O
pássaro despertou logo cedo, com o barulho dos que viviam ali desde que
invadiram seu espaço sem muita educação ou pudor. Incomodava-lhe o fato de que
os sons e ruídos que eles faziam, de certa forma tão repulsivos, abafassem o dom
que lhe invadia a alma e saía em forma de canto. Entristecia-lhe essa coisa de se
acostumar com o infame, como se o feio fosse mais encantador que o belo. A
ordem se invertera. E isso o assustava. Ele precisava sair dali, voar um pouco
além do lugar comum, quem sabe ir a busca de realidades melhores...
-
Como se isso fosse possível! – Ele pensou. Em sua mente havia certa descrença, contudo
ele voou alto. Acima dos motivos errados. À procura das razões certas para
continuar acreditando na beleza da vida. O pássaro subiu à colina mais alta que
pôde e pousou. Descansou um pouco, olhou para baixo e começou a assistir
tamanha diversidade de escolhas. Sim, escolhas. Ele já havia pensado nisso, que
as pessoas são todas iguais e o que as diferencia é o que elas escolhem. Além
do mais, o ambiente era o resultado das escolhas de todas essas pessoas que fazem
parte dele. Do alto ele podia ver como um todo, no que as diferentes escolhas
resultava. Como as ruas e estradas, os rios, mares e lagos interligado formam
um único desenho visto de cima, assim era a cidade. O que antes era só o azul
do mar, agora era manchado de preto brilhante. O que era pra ser verde
contrastado de cores vivas, agora era cinza depois de queimados. - Eles pintam
os prédios que constroem sobre as cores naturais, e chamam isso de belo. Argh! –
Pensou com um tom de repúdio.
Apesar
de indignado, ele resolveu descer até lá e sobrevoar a cidade, por entre as
altas construções e o que sobrava da natureza. E ao chegar mais perto ele se
assustou um pouco mais. Percebeu que, por mais bem iluminadas fossem as
cidades, quando se estava na rua era como estar preso numa caverna escura cheia
de ursos ferozes. Não havia como sentir confiança alguma. Não se ouvia sons
encantadores, apenas ruídos ensurdecedores. E o pior de tudo: Não havia um
sequer que parecesse incomodado com tudo aquilo (pelo menos que ele tenha
visto). Logo então o pássaro subiu novamente, chorando, inconformado. Foi
subindo desorientado, pensando em como os humanos puderam entregar a vida, o
deslumbrante, sublime e fascinante em troca de um modo de viver tão indigno e fracassado.
Ainda era tarde do dia, mas para ele tudo escureceu de repente. Sem perceber, o
pássaro havia entrado em um andar de um prédio em chamas. Era tudo fumaça e
fogo. Ele tossiu, tentou resistir, mas perdeu as forças e caiu.
Algum
tempo depois, talvez algumas horas, o pássaro acordou assustado. - Será que fui
pego pelo sombrio mundo dos humanos? Onde eu estava quando apaguei? – Ele
pensava e piava incessantemente, como uma criança indefesa. Ou como aquela
criança, do sombrio mundo dos humanos, que o resgatara daquela terrível situação.
Aquele inocente e desbravado garoto de apenas dez anos de idade, que o viu
entrar no cômodo de onde estava sendo resgatado, batendo asas e desesperado
para encontrar a saída. O garoto já estava na porta, no colo de um bombeiro
(que também tenha o seu mérito), quando percebeu aquele pássaro perdido e
indefeso e se deu conta de que o seu resgate não era mais digno que o resgate
do pássaro, afinal, os dois estavam perdidos, os dois eram indefesos, e os dois
mereciam a vida.
O
menino olhou para o pássaro e percebeu, no fundo daqueles pequenos olhos
brilhantes, que o medo e a insegurança tomavam conta daquela criaturinha tão graciosa.
– Você não merece isso. Eu não posso deixar que essas coisas ruins tomem conta
do seu coração. Venha aqui que eu vou te dar um abraço. – O garoto pegou aquele
pequeno pássaro que quase cabia na sua mão e, de alguma forma, o abraçou delicado
e firme ao mesmo tempo. Então ele sussurrou para o bichinho: – Eu ouvi falar
que um abraço expulsa tudo aquilo que há de ruim dentro de nós, mas isso é um
segredo dos fortes, ok?! - E o passarinho confiou. E o amor agiu. E o medo, a
insegurança, a descrença, tudo aquilo se fora...
O pássaro agora tinha um dono que o amava, que o
deixava livre. Um dono muito maior do que ele, de um amor tão puro que o
constrangia. Assim ele percebeu o quanto estava equivocado em relação aos
humanos. Havia esperança sim. Ainda existia alguma luz como a essência que
diferencia os homens. Não é porque a maioria está cega que a beleza perdeu o
seu valor. Não é porque acreditam na mentira que a verdade deixou de ser digna
de toda crença. Vale a pena acreditar uma vez. E mais uma. E sempre. Porque,
assim como o garoto reconheceu que os dois eram igualmente dignos da vida,
existe alguém por quem vale lutar. Existem aqueles por quem não se pensa duas
vezes para entrar no fogo e resgatá-los. Se olharmos ao redor, veremos, e
teremos a chance de escolher. Nesse conceito o passarinho estava certo. O que
nos diferencia é as escolhas que fazemos. E veja bem: Para ele o que
diferenciou o menino de toda a cidade foi a sua decisão de escolher o amor. E o
pequeno voador, agora totalmente novo, esperava que muitos aprendessem com o
seu novo dono a escolher o amor todos os dias. O seu nome agora era Fênix. E sua
força, a esperança.